Pele de vidro (glass skin) talvez seja um espelho
E talvez você não vai encontrar nada no reflexo.
Outro dia, entre um atendimento e outro, cometi o erro diário de abrir o TikTok e tomei um susto com a música do fundo (acontece com certa frequência)
Me deparei com um vídeo lá de fora sobre glass skin, pele de vidro. Uma jovem. Chegava a brilhar.
A pele da moça parecia feita de cristal. Sem um poro, sem um vinco. Um brilho translúcido.
Ela parecia muito orgulhosa daquela pele.
Mas, ao mesmo tempo, não vi ali qualquer traço que denunciasse o tempo, a dúvida, o cansaço.
Aquilo me pareceu tão artificial que, por um segundo, pensei que fosse filtro.
Mas e se fosse um vídeo fake, gerado por inteligência artificial?
Impecável. Hipnótica. Um espelho.
Mas o que você consegue ver naquele espelho?
Por alguma razão, me lembrei do filme A Árvore da Vida. Um filme que pode ser sobre muitas coisas, infância, perda, mas talvez seja, no fundo, sobre o significado de existir.
Mais especificamente, de uma cena em que o personagem caminha sem rumo por um deserto imenso, cercado por luz e silêncio, tentando entender o que faz sentido na existência.
Não sei explicar bem por quê, mas uma coisa levou à outra.
Assim como naquele filme, e em tantos outros do Malick, existe ali uma conversa silenciosa sobre os conflitos entre forma e essência, entre o visível e o sentido.
E tudo isso envolve viver a vida.
De verdade.
A pele, esse órgão tão visível e tão mal compreendido, é parte essencial dessa existência.
Milhares de anos de adaptação biológica nos deram rugas de expressão, poros abertos, oleosidade e contrações no rosto para comunicação.
A pele fala.
Mas hoje, por uma razão essencialmente comercial, ela tem sido calada.
Reduzida a uma superfície que deve ser polida, iluminada, corrigida, ao ponto de parecer que nunca viveu.
Quando me deparo com a tal glass skin, sinceramente, me parece que estou diante de um vazio.
Um ideal estético que seria o “melhor possível” e que, ao mesmo tempo, não contém nada. Como uma vitrine: bonita, mas fechada. Intocável. Vazia.
A pele não foi feita pra ser vidro.
E nós sentimos tudo nela.
O arrepio, o calor, a vergonha, a ternura.
Talvez, na ânsia de atingir esse estado utópico e inexpressivo, esses jovens nem tenham tempo de se perguntar quem são.
Não que refletir sobre questões existenciais seja a atividade mais leve do mundo…
Mas viver no extremo oposto, onde o foco é só aparência, só brilho, só controle, parece, no mínimo, preocupante.
Especialmente quando se trata de uma demanda externa, impulsionada por algoritmos e por lucro.
Quando a gente tenta torná-la lisa como uma superfície polida, a gente perde algo.
Não só textura.
Mas também história.
Expressão.
Presença.
Porque uma pele que não mostra poros também não mostra emoções.
Uma pele que não enruga, não sorri.
Uma pele que não se transforma… não vive.
E claro, eu entendo o desejo de cuidar, de se ver bem no espelho, de querer aquela “luminosidade saudável”.
Cuidar da pele é uma forma de dizer ao corpo: eu te percebo, eu te valorizo, eu te escuto.
E também de protegê-la do câncer de pele, porque, afinal, vivemos nessa realidade peculiar onde existe uma bola de radiação no céu que nos causa dano no DNA.
Mas isso é muito diferente de tentar silenciar todos os sinais de que estamos vivos.
A obsessão pelo brilho perfeito me parece, às vezes, uma tentativa de congelar o tempo.
De evitar a dor, o caos, o acaso.
Fugir daquilo que nos torna humanos.
E enquanto mais estudos mostram que as novas gerações vivem menos, se frustram mais e adoecem mais cedo…
Também vejo que estão mais focadas em controlar a superfície.
Talvez seja hora de lembrar que a pele é mais do que um reflexo.
Ela é um lugar.
Onde as coisas acontecem.
Onde a vida, literalmente, nos atravessa.
E se há beleza em refletir luz, talvez haja ainda mais beleza em ser capaz de absorvê-la.
Mas viver é justamente o contrário disso.
É se arriscar, tomar decisões difíceis, cometer erros.
Nem tudo é previsível, retocável e a beleza não está na perfeição, até porque teoricamente é para ser algo inatingível.
Não sei vocês, mas eu prefiro a pele que fala, que tem uma história de verdade e personalidade.
Talvez a glass skin seja só mais um reflexo do nosso tempo: uma época que valoriza o que é liso, rápido, impecável, mas que não sabe muito bem o que fazer com a dor, com o erro, com a profundidade. Inclusive falta bastante profundidade.
E tudo bem usar cosméticos, inclusive eu abordo isso.
Tudo bem gostar de ver a pele iluminada.
Tudo bem brincar com filtros de vez em quando.
Só não vamos esquecer que a pele não é um espelho.
Ela é um tecido vivo.
Cheio de imperfeições, intenções e lembranças.
E talvez, no fim das contas, o que a gente precise não é de uma pele que reflita o mundo lá fora.
Até porque o mundo atual não está tão belo também.
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Que texto lindo. Muito poético.
Gosto muito das suas reflexões... não é "só" sobre pele, mas você enxerga o que está por trás da aparência. Isso é muito raro em um médico, parabéns!